Skip to main content

O Atraso das Ciências Humanas no Brasil


O Atraso das Ciências Humanas no Brasil

Publicado por André Luzardo - Jan2011
O estudante de graduação em ciências humanas no Brasil percebe logo de cara que está em uma situação muito diferente de seus colegas nas exatas. As aulas são ministradas de maneira nada convencional — através de filmes, debates e dinâmicas, muitas dinâmicas. Os métodos de avaliação variam desde provas e trabalhos em grupo à participação em debates sobre a biografia do Cazuza. Os critérios de avaliação são  subjetivos e produzem notas quase sempre espetaculares. Caso o estudante decida continuar e fazer pós-graduação nas humanas ele muito provavelmente vai se deparar com grupos de pesquisa com descrições enigmáticas como essa:
"projeto de pesquisa-intervenção do processo de produção de subjetividade nas instituições escolares que ocorrem através de seus agenciamentos (maquínicos e coletivos de enunciação). Para isso, são investigados os códigos que ali se produzem e as territorialidades nas quais se constituem, identificados e descritos os acoplamentos dos conjuntos de relações materiais (agenciamento maquínico ou conteúdo) e dos regimes de signos correspondentes (agenciamento coletivo de enunciação ou expressão). Na investigação dos agenciamentos, códigos e territorialidades são utilizados os dispositivos de pesquisa da Etnografia Educacional, tais como: observação participante, entrevistas de profundidade (individual e de grupo focal) e análise documental. A estes dispositivos se acrescenta o role-playing , resgatado em seu sentido de produção de Realidade Suplementar , proveniente do Sociodrama Educacional. Compondo com o pólo de desterritorialização , que caracteriza todo agenciamento , busca-se ainda, a nível de intervenção, promover dispositivos grupais alternativos que possibilitem a aparição do novo (da descodificação e desterritorização , das linhas de fuga ), na forma, por exemplo, do Devir-Mestre e do Devir-Criança , além do desenvolvimento de ambientes lúdicos de aprendizagem que decorrem deste último. Neste sentido, a produção de Realidade Suplementar desempenha papel fundamental, tanto quanto o dispositivo grupal sociodramático (que também serve de referência para as reconstituições da entrevista de grupo focal supracitada). Desta forma, se busca produzir uma colagem de três referenciais teóricos: a Esquizoanálise, de Deleuze e Guattari; o Sociodrama, de Moreno; e a Etnografia Educacional."
Não são só os cursos de humanas que diferem radicalmente dos de exatas mas a qualidade da produção científica também. A tabela abaixo mostra o índice h brasileiro comparado com o americano e britânico.
área
porcentagem do índice h americano
porcentagem do índice h britânico
ciências sociais
15.59%
28.16%
psicologia
14.80%
26.62%
matemática
25.94%
47.33%
física e astronomia
26.52%
45.80%
química
22.88%
39.73%
ciências biológicas e da agricultura
25.83%
36.75%
O índice h da psicologia no Brasil é apenas 14.8% do valor do índice h da psicologia americana e o das ciências sociais brasileiras 15.6% o do americano. Já a matemática brasileira tem 25.9% do índice da matemática americana e a física e astronomia brasileiras 26.5%, quase o dobro das suas colegas nas humanas. E isso apesar do fato da matemática contar com apenas 46 programas de pós-graduação no Brasil enquanto que a psicologia tem 64. Já as ciências sociais tem mais de 421 programas de pós e pelo menos 7340 docentes (os valores são aproximados já que a CAPES não usa a mesma categoria que o SJR; eu incluí apenas os cursos mais óbvios como antropologia, educação, sociologia, arqueologia, etc, e portanto os valores reais com certeza são maiores) enquanto que a física e astronomia só possuem 56 programas e 1340 docentes.
Qual a razão do atraso das ciências humanas brasileiras? Nos próximos posts eu ofereço a minha resposta.

O Atraso das Ciências Humanas no Brasil – Psicanálise
Publicado por André Luzardo
Image via Wikipedia
Dando continuidade ao post da semana passada, aqui vai a primeira parte da minha resposta.
Psicanálise
Particularmente popular entre psicólogos, a psicanálise também pode ser encontrada em várias outras ciências sociais tanto na versão original quanto nos sabores Jung, Melanie Klein, Lacan, Erich Fromm e muitos outros. Criada exclusivamente por Sigmund Freud, a psicanálise começou como uma teoria promissora que eventualmente explicaria os transtornos mentais com base em certos traumas experienciados durante a infância. Porém logo de cara Freud resolveu tomar o caminho pseudocientífico. Quando ficou evidente que muitos casos de histeria não eram precedidos de abusos sexuais na infância, ele decidiu que o importante não era a existência real do abuso e sim de fantasias de natureza sexual pelo paciente. Dessa forma, o que antes era passível de verificação (ou o paciente foi abusado ou não) agora tinha se tornado, nas palavras de Karl Popper, não-falsificável (o paciente pode ou não ter fantasiado mas não tem como ter certeza, a interpretação do psicanalista é o que conta). Baseado não em evidências experimentais mas simplesmente na observação de um punhado de pacientes, Freud postulou todo um universo psíquico habitado por entidades bizarras (ego, superego, id) e regido por supostos mecanismos de defesa (repressão, sublimação, negação, etc). Tanto Freud quanto seus seguidores passaram a explicar não só transtornos mentais mas também o desenvolvimento, pensamento e emoções normais. Tudo é definido de maneira convenientemente vaga e as conclusões sempre impossíveis de serem falsificadas. Tome por exemplo o complexo de Édipo, a teoria de que todo menino passa por uma fase onde ele fantasia poder matar o pai e pegar a mãe e que, de acordo com Freud, é um dos marcos mais importantes do desenvolvimento mental masculino. Quando pressionados por evidências, psicanalistas citam exemplos do comportamento de um ou outro menino nessa idade que, segundo eles, bastaria pra demonstrar a validade de tal complexo. Mas isso não passa de evidência anedota; é necessário um experimento investigando, por exemplo, se há diferenças significativas entre as freqüências de comportamentos agressivos direcionados ao pai e a mãe. Frente a tal proposta psicanalistas imediatamente sacudiriam a cabeça em reprovação: a criança pode reprimir seus desejos de assassinar o pai, o que impediria qualquer comportamento agressivo de se manifestar. Argumentos similares são empregados para desqualificar toda e qualquer tentativa de testar a psicanálise cientificamente. Cada conceito psicanalítico se apóia em outro conceito psicanalítico e assim por diante até chegar a um ou outro postulado cuja verdade não há como verificar — devem ser aceitos puramente pela fé no profeta Freud.
A psicanálise pode ter falhado como teoria científica da mente humana mas e quanto a psicanálise como terapia? Essa sim é passível de verificação e muitos experimentos já foram realizados. Até hoje não foram encontradas evidências sólidas de que ela é mais eficaz que outras terapias. De fato, existem evidências de que, com a possível exceção de intervenções cognitivo-comportamentais em fobias, todas as terapias faladas (talk therapies) produzem praticamente o mesmo efeito e que esse efeito se assemelha em muito ao efeito placebo.
Recentemente alguns neurocientistas vêm tentando dar origem a um movimento neopsicanalítico, dessa vez com a intenção de validar alguns conceitos freudianos através da neurociência. Ao meu ver, essa é uma promessa enganosa. Como vimos, conceitos freudianos foram definidos de maneira a ser não-falsificáveis. Contudo, é possível redefinir alguns deles para que se tornem falsificáveis. Por exemplo, repressão pode ser definida simplesmente como o processo pelo qual  o cérebro elimina memórias de conteúdo emocionalmente negativo, o que até encontra certa evidência em alguns estudos. No entanto esse novo conceito de repressão é apenas uma vaga lembrança do mecanismo de defesa freudiano pelo qual fantasias carregadas de conteúdo sexual são retiradas do consciente e aprisionadas no inconsciente onde permanecem até retornar ao consciente como sintomas neuróticos, atos falhos e sonhos. Portanto, se algo da psicanálise for validado cientificamente será em uma versão tão diferente da original quanto a teoria atômica atual difere do atomismo grego.
O sucesso da psicanálise nos cursos de humanas no Brasil esconde ainda uma grande ironia. Sociólogos, antropólogos e psicólogos frequentemente nos lembram, quase sempre com razão, o quanto nossa sociedade é preconceituosa e machista. No entanto, na medida em que os mesmos defendem as idéias pseudocientíficas de um austríaco que viveu 100 anos atrás, eles acabam dando seu próprio apoio aos vários machismos e preconceitos vitorianos contidos na psicanálise. Ou será que ‘inveja do pênis’ é realmente parte da condição feminina?
Conclusão
Como teoria da mente humana a psicanálise não passa de pseudociência. Como psicoterapia não é possível afirmar que ela seja mais eficaz que as outras psicoterapias existentes e há evidências que seus efeitos não passam de placebo. O que as ciências humanas precisam é de uma base experimental sólida e de um raciocínio baseado em evidências, e não de teorias pseudocientíficas ou de gurus com pretensões proféticas.
Em breve: outra razão pro atraso das ciências humanas no Brasil. Enquanto isso, gostaria de ouvir comentários dos estudantes e professores de humanas. Como é a situação onde você estuda/leciona? Que tipo de problemas encontra? Quais são os mal-entendidos mais comuns?
Update 28/01/2011: Esqueci de incluir uma referência ao novo livro do Michel Onfray onde ele critica Freud e a psicanálise. Infelizmente minha ignorância da língua francesa me impede de lê-lo. Mas já li e recomendo o clássico da desmistificação freudiana ‘The decline and fall of the Freudian empire‘ do Hans Eysenck.
Update 26/04/2011: O psiquiatra e pesquisador de Harvard J. Allan Hobson acaba de publicar um livro autobiográfico sobre suas pesquisas sobre os sonhos. Para aqueles que esperam deferência à psicanálise Hobson tem isso a dizer:
“A teoria psicanalítica é popular porque é fácil de entender, mas eu considero ela errada. Eu não acho que sonhos são causados pela expressão de desejos infantis reprimidos. Não há nada científico na psicanálise, não há nada científico em Sigmund Freud. Ele não fez nenhum experimento, ele não fez nenhuma observação direta, ele nunca usou controles. O cara não estava nem aí”

O Atraso das Ciências Humanas no Brasil – Pós-Modernismo
Publicado por André Luzardo
https://racionalistasusp.files.wordpress.com/2011/03/arquivoexibir-aspx.jpeg?w=604
Parte final de uma série de três.
Pós-Modernismo
Alan Sokal é sem dúvida um dos meus grandes ídolos. Um físico, em 1996 ele submeteu para publicação na revista de estudos sociais e culturais ‘Social Text’ um artigo intitulado ‘Transgredindo as Fronteiras: Em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica’. Nele, Sokal faz todo tipo de afirmação absurda em uma prosa vaga e repleta de citações sem sentido mas autênticas sobre matemática e física proferidas por filósofos e cientistas sociais pós-modernos. As especulações psicanalíticas de Lacan são ‘confirmadas’ por descobertas recentes da física-matemática; a crítica feminista de Irigaray ‘impulsionou’ descobertas importantes nas teorias das supercordas e da gravitação quântica. Os erros de matemática e física são crassos e as analogias e metáforas descaradamente forçadas. Surpreendentemente, o artigo foi aceito para publicação. Para o embaraço dos editores, Sokal revelou logo depois que tudo não passara de uma paródia.
No excelente livro ‘Imposturas Intelectuais’, que deveria ser leitura obrigatória para todo estudante de primeiro ano de ciências humanas no Brasil, Sokal e Bricmont tecem a mais profunda e completa crítica que conheço ao pós-modernismo. Não cabe aqui repetir essa crítica; compre o livro e leia!
O que acho interessante comentar é que essa mediocridade intelectual que é o pós-modernismo não teve um impacto tão grande nos USA ou no UK mas infelizmente caiu como uma luva nos departamentos de humanas no Brasil. Assim como acontece com a psicanálise, é praticamente impossível cursar sociais e humanas no país e não se deparar com Deleuze, Guattari, Baudrillard, Derrida, Latour ou com jargões e máximas pós-modernas como ‘problematização’, ‘a realidade é uma construção social’ e ‘toda verdade é relativa’.
Qual o motivo das humanas no Brasil terem sucumbido tão facilmente a esse mal? Para mim a resposta está no incrível despreparo das mesmas em raciocínio formal e matemática.
Fora do Brasil, no Canadá, USA e UK, estou acostumado a encontrar filósofos, psicólogos e lingüistas perfeitamente versados em álgebra linear, cálculo e equações diferenciais, vocabulário básico de qualquer ciência. No entanto aqui no Brasil a simples menção de uma equação entre cientistas sociais já causa temor e espanto. Quando muito, esses departamentos oferecem cursos básicos de estatística. Básicos demais, esses cursos geralmente duram um semestre apenas e consistem na simples memorização das condições nas quais usar um ou outro teste de hipóteses estatístico.
Acho que esse despreparo matemático também ajuda a explicar porque é muito comum encontrar teorias ultrapassadas circulando fantasmagoricamente  pelas humanas. Departamentos de educação ainda contam com Piaget e Vygotsky para descrever o desenvolvimento do pensamento e aprendizagem; antropólogos, psicólogos e sociólogos ainda esperam encontrar em Foucault explicações profundas sobre doenças mentais, sexualidade e relações humanas. No melhor dos casos, esses e outros pensadores tiveram seu valor em sua época, quase que exclusivamente na condição de filósofos e teóricos pré-científicos, mas suas teorias desde então falharam em obter comprovação experimental ou foram simplesmente ultrapassadas. Teorias modernas sobre o comportamento, com forte componente biológico, ênfase em modelos matemáticos e computacionais e análises estatísticas sofisticadas, são talvez demasiado complicadas para quem não tem o mínimo de treino em matemática.
Conclusão
Psicanálise, pós-modernismo e teorias pré-científicas ultrapassadas predominam nos departamentos de humanas e sociais brasileiros e são, na minha opinião, sintomas de um problema mais sério: o total despreparo das últimas em raciocínio formal e matemático. Esse despreparo constitui o real entrave para o desenvolvimento destas ciências. Se você está lendo isso e é estudante de humanas, ainda há tempo de fazer algo a respeito: matricule-se em disciplinas do primeiro ano dos cursos de matemática e física de sua universidade.
A distinção feita entre ciências humanas, sociais e exatas além de arbitrária é enganosa, levando muita gente a pensar que são ciências diferentes com métodos diferentes. A ciência, ao contrário, é uma só e sua linguagem é a matemática.

Comments

Popular posts from this blog

BRASIL Análise: Como um filme pró-golpe (falso!) de 1964 viralizou nas redes sociais Pesquisador descreve os 3 passos da estratégia usada por influenciadores e sites sem credibilidade (veja a credibilidade dele logo abaixo da primeira foto no *) para fomentar a polarização virtual Por  Por Rafael Goldzweig*, especial para EXAME access_time 9 abr 2019, 16h36 - Publicado em 9 abr 2019, 16h03 Exército durante a Ditadura Militar de 1964 (Bettmann / Contributor/Getty Images) *Autor na Iniciação Cientifica da tese "O ingresso da Venezuela no Mercosul: análise dos aspectos políticos e econômicos", onde descreve "... A importância do tema justifica-se pela importância que o bloco adquiriria com a adesão desse novo país, tendo em vista a ampliação dos mercados consumidores e das reservas petrolíferas do bloco." Artigo de Rafael Goldzweig, coordenador de análise de redes sociais na Democracy Reporting International Na última semana, o f...

The great organic myths

Why organic foods are an indulgence the world can't afford They're not healthier or better for the environment – and they're packed with pesticides. In an age of climate change and shortages, these foods are an indugence the world can't afford, argues environmental expert Rob Johnston Thursday, 1 May 2008   Myth one: Organic farming is good for the environment The study of Life Cycle Assessments (LCAs) for the UK, sponsored by the Department for Environment, Food and Rural Affairs, should concern anyone who buys organic. It shows that milk and dairy production is a major source of greenhouse gas emissions (GHGs). A litre of organic milk requires 80 per cent more land than conventional milk to produce, has 20 per cent greater global warming potential, releases 60 per cent more nutrients to water sources, and contributes 70 per cent more to acid rain. Also, organically reared cows burp twice as much methane as conventionally reared cattle...

Nutrition-related health effects of organic foods

Am J Clin Nutr (May 12, 2010). doi:10.3945/ajcn.2010.29269 © 2010 American Society for Clinical Nutrition ABSTRACT Nutrition-related health effects of organic foods: a systematic review 1 ,2 ,3,4 Alan D Dangour, Karen Lock, Arabella Hayter, Andrea Aikenhead, Elizabeth Allen and Ricardo Uauy 1 From the NutritionPublic Health Intervention Research Unit Department of EpidemiologyPopulation Health (ADD AH AARU) the Health Services Research Unit Department of Public HealthPolicy (KL)the Medical Statistics Unit Department of EpidemiologyPopulation Health (EA) London School of Hygiene & Tropical Medicine London United Kingdom. 2 The UK Food Standards Agency had no role in the study design, data collection, analysis, interpretation, or writing of the report. 3 Supported by the UK Food Standards Agency (PAU221). 4 Address correspondence to AD Dangour, Nutrition and Public Health Intervention Research Unit, Department of Epidemiology and Population ...